"Quererias que eu lhe chamasse asno, atrevido e
mentecapto; mas tal não me passa pelo pensamento; castigue-o o seu pecado
e trague-o a seu bel-prazer, e que lhe não faça engulhos. O que não pude deixar
de sentir foi que me apodasse de manco e de velho, como se estivesse na minha
mão demorar o tempo, que parasse para mim, ou como se se tivesse saído manco de
alguma rixa de taberna, e não do mais nobre feito que viram os séculos passados
e presentes, e esperam ver os vindouros. Se as minhas feridas não resplandecem
aos olhos de quem as mira, são estimadas, pelo menos, por aqueles que sabem
onde se ganharam; que o soldado melhor parece morto na batalha do que livre na
fuga: e tanto sinto isto que digo, que, se agora me propusessem e facilitassem
um impossível, antes quisera ter estado naquela peleja prodigiosa do que são
das feridas sem lá me ter achado. As cicatrizes que o soldado ostenta no rosto
e no peito são estrelas que guiam os outros ao céu da honra, e ao desejar justo
louvor; e convém advertir que se não escreve com as cãs, mas sim com o
entendimento, que costuma aperfeiçoar-se com os anos. Senti também que me
chamasse invejoso e me descrevesse, como a um ignorante, que coisa seja a
inveja, que, verdade, verdade, de duas que há, eu só conheço a santa, a nobre e
a bem-intencionada; e sendo, assim como é, não tenho motivo para perseguir
nenhum sacerdote, que, de mais a mais, seja também familiar do Santo Ofício; e
se ele o disse referindo-se a quem parece, de todo em todo se enganou, que
desse tal adoro eu o engenho, admiro as obras e a ocupação contínua e virtuosa.
Mas, efetivamente, agradeço a este senhor autor o dizer que as minhas novelas
são mais satíricas do que exemplares, porque isso mostra que são boas, e não o
poderiam ser se não tivessem de tudo.
Parece-me que dizes que ando muito acanhado, e que me
mantendo demasiadamente dentro dos limites da minha modéstia. Sabendo que se
não deve acrescentar mais aflições ao aflito, e as que este senhor deve ter são
grandíssimas, sem dúvida, pois não se atreve a aparecer em campo aberto e com
céu claro, encobrindo o seu nome e fingindo a sua pátria, como se tivesse feito
alguma traição de lesa-majestade. Se porventura chegares a conhecê-lo, dize-lhe
da minha parte que me não tenho por agravado, que bem sei o que são tentações
do demônio, que uma das maiores é meter-se-lhe a um homem na cabeça que pode
compor e imprimir um livro com que ganhe tanta fama como dinheiro e tanto dinheiro
como fama (...)"
"Pensarão agora Vossas Mercês que é pouco trabalho inchar
assim um cão?" [CERVANTES, 2007, p. 7-9, VOL. II]
REFERÊNCIA:
CERVANTES, Miguel de. Dom Quixote de la Mancha.Tradução: Conde de Azevedo e Visconde de Castilho. São Paulo: Martin Claret. Vol. II, 3ª ed. 2007)
REFERÊNCIA:
CERVANTES, Miguel de. Dom Quixote de la Mancha.Tradução: Conde de Azevedo e Visconde de Castilho. São Paulo: Martin Claret. Vol. II, 3ª ed. 2007)
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